Por
Janethe Fontes
[Mélancholie - Arte de J. J. Henner 1829-1905]
Às vezes me bate uma melancolia... E ela me
assola repentinamente... E me faz pensar em tudo: na vida, na minha profissão,
nos sonhos ainda não realizados... nas lutas diárias... no sentido da vida...
nas pessoas em geral... no sofrimento... Enfim, um mutirão de coisas me
angustiam em certos momentos. [Janethe Fontes]
É nessa hora vazia
que lenta agonia
Me vem visitar...
Na Antiguidade, a Teoria Humoral,
teoria médica vigente na época, que teve seus princípios herdados dos
pitagóricos por Hipócrates, o comportamento e funcionamento do corpo humano era
explicado pela existência de quatro humores, o sangue, o fleuma, a bile amarela
e a bile negra. Cada um destes humores, no sentido do significado primitivo da
palavra, como líquido, e não como disposição de espírito, como a usamos
atualmente, correspondia a uma estação do ano, a uma etapa da vida humana, a
uma natureza da matéria, a saber: terra, água, fogo e éter ou ar, e assim por
diante. O equilíbrio destes quatro configurava a boa saúde, tanto física quanto
mental, e suas perturbações eram sentidas pelo seu portador. Regulava-se a
saúde pela aplicação do contrário àquilo que estava em demasia, ou seja,
combate-se o frio pelo calor e a sequidão pela umidade. Aristóteles, bem como
seus contemporâneos e a quase totalidade dos cientistas e estudiosos de
medicina até quase a modernidade, acreditava que um dos humores preponderava no
temperamento das pessoas, e as influenciava determinantemente. Os melancólicos
eram dominados pela bile negra, donde vem o nome desta afecção, melas, negro, e
chole, bile. Este humor tem, em sua natureza volátil, a propriedade de causar
em seus portadores um comportamento semelhante ao vento de que é composta, ou
seja, uma constante inconstância, que não seria desígnio de doença, como
naqueles que ela apenas ataca esporadicamente, os deprimidos, e sim por
natureza. Esta volubilidade é o que desencadeia a alternância entre os estados
passivos e ativos dos melancólicos, entre a inatividade desinteressada, o
isolamento dos obscuros, a tristeza sem razão e a aparência sombria e a
atividade convulsa, o envolver-se impetuosamente nas mais difíceis e gloriosas empreitadas,
o furor criativo e a dedicação compulsiva a algum afazer que os caracteriza
como pessoas de exceção, gênios de excelência naquilo a que se dedicam.
Durante a Idade Média a melancolia não
é vista somente como desequilíbrio dos humores corporais, mas também como
influência maléfica do mais distante dos planetas conhecidos até então, o mais
antigo e desgraçado dos deuses do panteão clássico: Saturno. Estes conceitos
chegam até a Baixa Idade Média através dos estudos astronômicos dos árabes, que
começam a conquistar a Europa através da Península Ibérica, levando não apenas
armas, mas também cultura e ciência. A identificação de Saturno com a
inconstância melancólica se dá através dos paralelos traçáveis desta com a
história do deus dentro da mitologia, ele ora é o senhor de todos os deuses,
ora o deus desterrado, exilado e humilhado, a um só tempo pai de todos e deus
castrado, impotente. Também seu correspondente na mitologia grega: Cronos, o
senhor do tempo, ajuda neste processo. Ele é o deus do tempo, da consumição de
tudo o que cria, devora seus filhos, presentifica o não-ser sendo a causa da
morte inexorável, evidenciando a vacuidade de toda obra humana, demonstrando
que o orgulho de nossa racionalidade não passa da maior das vaidades, e nada vale,
pois somos apenas pó, estamos fadados à morte assim como tudo o que existe está
condenado a não existir mais, é apenas questão de tempo.
A melancolia, em seu estado inativo, é
vista pejorativamente, enquanto é identificada com a preguiça, que é pecado
capital e vista por alguns como o maior de todos os pecados. A capacidade de
criação que ela inculca em seus portadores não é valorizada porque, nesta
época, a arte não tem valor estético, mas apenas utilitário, o artista não
passa de um canal da manifestação da graça divina, ele é inspirado, e sua obra
não precisa ser bela, do ponto de vista da forma, e sim útil quanto ao seu
conteúdo. Quanto mais nos aproximamos do fim do Medievo e dos alvores do
Renascimento, mais a melancolia vai recuperando seu aspecto qualitativo,
conforme tinha na Antiguidade, pois vai despontando a genialidade dos artistas
e a capacidade criativa do sujeito por ele mesmo, independente de qualquer
estância externa. Assim como a melancolia é colocada ao lado dos santos sob a
designação de acedia, que é o desligamento das coisas mundanas e a elevação ao
que é espiritual, à contemplação do ser divino, em uma fusão com a divindade
que desobriga o corpo de qualquer vínculo com o que for terreno e mundano.
Tristezas, soluços, ais,
Eis a verdade da minha vida.
Quando eu partir, com certeza,
Levo minha alma ferida.
Então indagarei ansiosa
Quem é Deus?... Onde estará?
As profundas modificações psicológicas
ocasionadas pelo Renascimento trazem a melancolia de volta plenamente imbuída
do caráter de excelência e motivo de orgulho em virtude das produções que
estimula no campo das artes e da filosofia. A quebra dos antigos paradigmas no
campo da fé, pela Reforma Protestante, e no campo do conhecimento, através da
Renascença, que davam ao homem todas as respostas, ocasiona a potencialidade da
exploração dos limites do intelecto humano em diversos campos. Revolucionam-se
as ciências, revolucionam-se as éticas religiosas, revoluciona-se o que o homem
pensa dele mesmo e aquilo através do qual ele se define. Mas, simultaneamente a
esta efervescência de criações culturais, o ser humano toma a consciência de
que está terrivelmente só, e de que é senhor absoluto de seu destino, único
árbitro de sua conduta, e este peso é demasiadamente opressor para que ele o
carregue sem cambalear novamente entre dois pólos opostos, o furor criativo
intercalado pela apatia. Em um primeiro momento, coloca-se o sentido da vida,
da própria e de tudo o que há, em uma projeto qualquer, em uma realização ou em
um desejo a ser realizado. Uma vez este realizado, esvazia-se de sentido e
abandona-nos novamente no deserto da falta de certezas, da multiplicidade de
possibilidades e perspectivas.
Mas afinal o que é melancolia? Freud
designou-a como um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo
mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer
atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar
expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa
expectativa delirante de punição. A psiquiatria designa como um estado mórbido
caracterizado pelo abatimento mental e físico que pode ser manifestação de
vários problemas psiquiátricos, tendendo hoje a ser considerado mais como uma
das fases da psicose maníaco-depressiva. Já segundo o dicionário Houaiss,
podemos considerar a melancolia como um estado afetivo caracterizado por
profunda tristeza e desencanto geral; depressão. Na derivação por extensão de
sentido, melancolia é um sentimento de vaga e doce tristeza que compraz e
favorece o devaneio e a meditação. Entretanto, eu prefiro a explicação simples,
mas nem um pouco simplória, de Moacir Scliar: Melancolia é, antes de tudo, algo que
faz parte da natureza, é uma condição existencial. Diferente da tristeza que é
passageira; do tédio, que nos dá a sensação de que o tempo não passa; da
depressão, termo moderno para uma condição clínica psicológica associada a
fatores psicossociais, a melancolia, antiga companheira da humanidade, é tanto
uma doença (como a depressão) como um estado de espírito (como a tristeza e o
tédio). O sucesso de livros sobre o assunto, no século XVII na Europa e no
começo do século XX no Brasil, são sintomas de grande identificação com o tema.
Porém, como já vimos acima, a
melancolia não fica relegada apenas à esfera dos artistas, ela atinge qualquer
pessoa. A única diferença é que a “melancolia de artífice ou melancolia de
artista, é a melancolia criativa, que aparece nos homens de exceção e que, ao
contrário da melancolia apática e desinteressada, vista como doença, faz da
angústia o motor propulsor da criação e da genialidade, doando sentido ao
absurdo da existência”.
Dia a dia a mesma coisa
Nesta vida tão maninha,
Horas inteiras passando
Filosofando sozinha.
Ainda segundo Marsílio Ficino – uma das
figuras mais importantes do Renascimento Italiano, conhecido através de seu
trabalho de tradutor de obras clássicas e autor – a melancolia, um dom divino e
singular, influencia ambiguamente a profunda reflexão e o isolamento, a apatia
e o furor criativo, o desinteresse e o brilhantismo intelectual. A saída
apontada como paliativo contra as influências maléficas de Saturno era,
justamente, se dedicar por inteiro às suas influências benéficas, como a
criação artística, a reflexão filosófica, o estudo profundo, pois, apesar de
ser o último e mais elevado dos planetas, também é ligado ao desterro nas
profundezas do mundo, tanto eleva a alma quanto possibilita que ela mergulhe
profundamente em autorreflexão. Portanto, um melancólico não tem outra alternativa
senão resignar-se ao seu destino sob os mandos de Saturno, ser excelente e
sofrer por isto.
Mágoas... Mágoas... Sempre mágoas
Enchendo meu coração.
Procuro alegrias na vida
E só encontro solidão.
Tristeza do Infinito
[Cruz e Sousa - 1861-1898]
Anda em mim, soturnamente,
uma tristeza ociosa,
sem objetivo, latente,
vaga, indecisa, medrosa.
Como ave torva e sem rumo,
ondula, vagueia, oscila
e sobe em nuvens de fumo
e na minh'alma se asila.
Uma tristeza que eu, mudo,
fico nela meditando
e meditando, por tudo
e em toda a parte sonhando.
Tristeza de não sei donde,
de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo.
Dessas tristezas incertas,
esparsas, indefinidas...
como almas vagas, desertas
no rumo eterno das vidas.
Tristeza sem causa forte,
diversa de outras tristezas,
nem da vida nem da morte
gerada nas correntezas...
Tristeza de outros espaços,
de outros céus, de outras esferas,
de outros límpidos abraços,
de outras castas primaveras.
Dessas tristezas que vagam
com volúpias tão sombrias
que as nossas almas alagam
de estranhas melancolias.
Dessas tristezas sem fundo,
sem origens prolongadas,
sem saudades deste mundo,
sem noites, sem alvoradas.
Que principiam no sonho
e acabam na Realidade,
através do mar tristonho
desta absurda Imensidade.
Certa tristeza indizível,
abstrata, como se fosse
a grande alma do Sensível
magoada, mística, doce.
Ah! tristeza imponderável,
abismo, mistério, aflito,
torturante, formidável...
ah! tristeza do Infinito!
Fontes consultadas para elaboração do
texto: Wikipédia Enciclopédia e Dialética Brasil.
Trechos das poesias Hora Vazia e Trovas das Minhas Mágoas de Neuza Rodrigues Leonel Livro “Vozes do
Coração”.
Nota: Artigo postado originalmente no blogue Palavreando, em 22/09/16.